Você abre uma revista em quadrinhos em qualquer página. Lembrança. Como se chegou aqui? É claro que as páginas seguem uma determinada ordem na revista, mas podemos subverter essa ordem o quanto e como quisermos — seres de outra dimensão, mestres do tempo. Já tentou espiar as imagens do final antes de ler o começo? Não exageraremos por hoje.
Que são lembranças?
Uma leitura cronológica do tempo conduz a um efeito de causa e consequência. Quando se quebra essa leitura cronológica em certo nível, ao ponto do presente perder referência, infere-se em nem um passado nem um futuro, quebrando o efeito de causa e consequência. O que se tem então? Perceber tudo que se passa nos três tempos como lembranças é uma possibilidade a essa leitura simultânea dos tempos e nos leva à mais perguntas do que respostas.
Na quarta edição de Watchmen passado, presente e futuro são os três uma coisa só. É como o Doutor Manhattan os percebe ao contemplar as suas lembranças, e é como o leitor os perceberá na sua narração, que relaciona eventos distintos, aproximando-os em tempo único, tudo acontece simultaneamente, independente das marcações de ano ou minutos; as lembranças que (àquele momento na história) já teriam acontecido, as que aconteceriam e as que acontecem se dão todas ao mesmo tempo.
Treze anos atrás a percepção de tempo de Doutor Manhattan me arrebata como me arrebata cinco anos atrás passar por experiência parecida a do personagem lendo Aqui, de Richard McGuire. A partir de um mesmo espaço limitado, uma variedade (que aparenta ilimitada) de momentos se desenrola. Sempre em páginas duplas deste mesmo lugar que se transforma no tempo. Muito como se as lembranças se chamassem umas às outras a partir daquele onde fixado numa mesma perspectiva, ecoando.
Numa das sequências, coisas e gente caem em 2014, 1625, 1926, 1990… Em outra, ao mesmo aqui onde gente se insulta em 1949, 1957, 1955, 1950, 1963, 1965, 1967, 1968 e 1984, coisas se quebram em 1943, 1944, 1949, 1982 e 2111. A mesma narrativa que no capítulo de Watchmen se passa principalmente pelo texto na narração do personagem e ecoa nas imagens, em Aqui se passa principalmente pelas imagens, refletindo no pouco texto que aparece eventualmente, sempre em falas de personagens. E o lugar, com a ação de um tempo onipresente, sofre impassível.
Fosse uma leitura convencional, de um personagem tomando ações que desenvolvem consequências e reações, em causa e efeito, de passado, presente e futuro, não se caracterizaria o impassível. Haveria espaço para julgamento, arrependimento… As lembranças se dariam ao fim, presas a um relativo presente. Eliminando qualquer ponto fixo de um tempo, tudo é lembrança.
Tanto o aqui, quanto o Dr. Manhattan percebem e reagem ao tempo dessa maneira impassível, refletindo a incapacidade de controle sobre as ações que se desenrolam nele. E quem os lê também o faz, a um primeiro momento, ainda que se possa ir além. As leituras de Aqui, e do quarto capítulo de Watchmen seguem um ritmo pré-ordenado conduzindo o leitor a essa experiência que o tira da noção de tempo que tivera até ali. Mas na releitura (ou lembrança) de ambos, o leitor pode ditar seu próprio ritmo, mestre do tempo daquele universo distante, indo, voltando, pulando, repetindo cenas… Se à passagem do tempo nos encontramos impassíveis, no controlar do relembrar o que se faz no tempo, não o somos mais.
Em alguns momentos de Aqui, vê-se gente olhando para o passado de lá. O que dá uma sensação de quase onipresença a quem lê, que se encontra superior àqueles, ao ter em mãos um aparente todo de acontecimentos do lugar, enquanto as pessoas do lugar só têm poucas velhas fotografias, ou lembranças apenas do que se foi anterior ao então delas. É nesse poder divino de observadores de um universo (o próprio Dr. Manhattan é visto como uma divindade em seu universo) que se destrói a impassibilidade do leitor. E as possibilidades desse poder divino se desdobram em perguntas.
Em Aqui há muitas perguntas de respostas que fogem, como lembranças perdidas. Como a que abre a história: “Hmmm… O que eu tinha vindo fazer aqui mesmo?”. E é nessa leitura aparentemente caótica, sem presente passado e futuro, que os personagens e leitores buscam respostas perdidas em algum ponto do tempo.
O livro em quadrinhos, Aqui, e a quarta edição de Watchmen, de Alan Moore e Dave Gibbons, são bons exemplos de como ler quadrinhos pode ser como viajar em máquina do tempo dentro de outro universo.