A caminho de casa ontem eu parei em uma sebo a fim de comprar um gibi para ler no ônibus (tenho dessas) e achei uma edição de Sandman [Sandman Especial Nº3 da Editora Globo] de título Terra dos Sonhos. Compila as histórias Calliope, Um Sonho de Mil Gatos, Sonho de Uma Noite de Verão e Fachada.
Eu já li todas essas histórias, mas não li todo Sandman ainda. Já há dez anos que leio Sandman, com longos intervalos (e algumas releituras) entre os recortes que pego para ler, não porque eu não gosto, eu na verdade amei praticamente tudo que li até aqui, é só que algumas séries eu gosto de tomar meu tempo lendo. Há 75 edições de Sandman, das quais eu já li 56. O único momento de Sandman que tive dificuldades de ler, digo, que não gostei de cara e tive de tentar por mais de uma vez, foi justamente o das primeiras edições, com a história de Morpheus aprisionado (qual era o título mesmo?). Até por isso acho válido quem pensa em ler Sandman começar por alguma outra história, por mais que a maioria das pessoas seja contrária a ideia de começar a ler algo de algum ponto que não o começo. Um erro dessa maioria das pessoas. A internet deixou todo mundo mal acostumado.
Quando eu era criança eu ia na banca ou na sebo e se eu tivesse dinheiro e a capa me dissesse algo eu não pensava duas vezes e comprava uma história que podia muito bem estar pegando a partir de um ponto avançado daquela série. E mesmo muita gente da minha idade que, como eu, quando criança passou a gostar de diversas coisas sem ter começado pelo começo (até parece que todo mundo começou a assistir Dragon Ball do episódio 1), hoje não aceitaria a proposta de pegar uma série como Sandman e ler a edição 18 antes de mais nada. Mas é sério, faça isso. Trata-se de Um Sonho de Mil Gatos.
Eu lia essa história para o meu filho antes dele dormir quando ele era pequenininho (hoje ele tem doze anos, na época ele tinha 4). É um bom exemplo da potência de Sandman para histórias com uma pegada de fábula ou conto. Muito me encanta histórias de terror que podem ser contadas por aí em conversas. “Tem uma história em Sandman que…” é um bom jeito de convidar alguém à leitura da série, mais do que uma apresentação formal do que se trata como um todo [eu introduzi It às crianças da minha família contando a cena do George encontrando o Pennywise quando elas ainda teriam tanto medo de uma história dessas que suas mães viriam puxar a minha orelha depois por terem tido de lidar com criancinhas acordando no meio da madrugada por conta de um pesadelo com o palhaço].
Um Sonho de Mil Gatos é sobre a potência que um sonho pode ter para moldar a realidade, e você pode optar como prefere fazer a interpretação da coisa. Trata-se de uma forma de enxergar o mundo a partir da perspectiva felina em oposição a do homem, e de como o ato de sonhar pode te fazer questionar a realidade como é posta. Ela termina com a indagação “Com o que o gato sonha?” e fica com você para além da leitura, o tipo de história que serve bem para o seu último momento acordado no dia.
Outra história daqui que serve bem para ter um primeiro contato com Sandman (eu diria que Fachada também, mas como há personagem que remete ao Universo DC, talvez isso intimide um leitor que não conheça) é Calliope. A história de um homem que abusa de uma musa que o trará inspiração para que ele alcance sucesso, glória, dinheiro, etc. O final ainda traz uma atitude inesperada, Calliope não guarda rancor. As duas histórias trabalham mais as possibilidades narrativas para uma série envolvendo o ato de sonhar e a figura personificada do sonho, o Sonho (Sandman, Morpheus, Oneiros), mais do que a possibilidade narrativa dele como protagonista da série. É o que mais me encanta em Sandman, as histórias a partir do sonhar, ainda que eu também goste bastante do personagem Sonho em si e das histórias que ele age mais como protagonista.
Com exceção do tributo a Shakespeare (Sonho de Uma Noite de Verão) esse encadernado tem três histórias que eu talvez facilmente apontaria como as minhas histórias favoritas de Sandman (junto com algumas outras, claro), e acho que gosto ainda mais delas tendo relido agora assim, ao buscar uma história para ler no caminho de volta para casa. É uma coisa que acho que pouca gente faz hoje em dia (e se eu tivesse dinheiro sobrando eu faria questão de fazer todo dia). A casualidade da leitura, a leitura em meio a rotina como algo naturalmente ligado a ela, vai se perdendo; agora usamos esses espaços do dia-a-dia (que antes poderiam ser da leitura) para puxar o celular do bolso e ir deslizando um feed de vídeos.
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A edição da Globo também me faz ter saudade de como eram as revistas em outro momento. Uma das coleções mais recentes de Sandman é a Sandman Edição Especial de 30 Anos, que é mais barata em relação à coleção absoluta, em capa dura, bem maior, mas ainda não me parece tão barata quanto pode ser uma série tão popular (ou seja, que pode ter uma tiragem maior do que outras). Mas eu não sei bem disso de qualquer forma. Tanto Sandman Especial da Globo quanto a Especial de 30 Anos da Panini compilam a série por recortes ou arcos, ou agrupamento de histórias mais curtas entre arcos maiores. Eu tenho uma de Sandman Edição Especial de 30 Anos, o volume 8, e comprei ela porque quando essa coleção estava saindo eu já tinha lido tudo que foi lançado até a edição 7 (a maior parte enquanto trabalhei em uma livraria).
A da Panini tem, além das histórias, prefácio, introdução e um texto do Gaiman ao final e alguns esboços dos personagens. É até bastante coisa se compararmos com outros materiais da Panini nos últimos anos. Agora, a edição da Globo me surpreendeu com conteúdo extra que eu não esperava, como ilustrações, cartas dos leitores, textos complementares, um pôster (impossível de destacar sem destruir a revista, mas ainda assim, dá vontade), e mais coisas ainda. Na seção de cartas, “Cartas na Areia”, duas cartas enviadas selecionadas para aparecer são de leitores cujos textos parecem completamente inebriados pelas areias do sonhar; o de Maurício Yoshikazu começa com “Havia magia em todo lugar, quando o planeta era jovem e as pessoas inocentes, inocentes como MOONSHADOW…” e o de Sonia Cristina termina com “O Príncipe impressiona, transporta e arrebata. É muito breve, mas deixa como marca, em vez do sinal do vampiro, o vínculo do encontro ou a catarse da agonia infinita, o sonho corroendo a realidade dentro do pesadelo. Eu vou esperar. Segurar o prazer. Segurar os sonhos…” Esse tipo de inserção da perspectiva do leitor faz parecer que a minha experiência de leitura é menos solitária, é um charme que hoje inexiste nas revistas lançadas no Brasil. Não quero com isso dizer que deveria haver uma seção de cartas na coleção 30 anos de Sandman da Panini, mas sim que isso faz falta e caberia muito bem em diversos materiais atuais da editora.
Há também uma página antes das histórias (com exceção da primeira) que apresenta a leitura porvir. Antes de Um Sonho de Mil Gatos:
“Os gatos são animais belos. Elegantes. Imponentes. Mas, acima de tudo, estranhos… Muito estranhos… Eles enxergam e ouvem coisas que nem sequer imaginamos existir! Como se isso já não fosse assustador o bastante, esses místicos felinos sonham… E isso pode ser muito perigoso para nós, humanos… SANDMAN nº 18: Uma edição dedicada aos amantes desses ‘inofensivos’ animais!”
Antes de Sonho de Uma Noite de Verão:
“Alguns fazem acordos com pessoas. Outros tratam com demônios. Ele fez um contrato com os sonhos. SANDMAN 19: Sonho de Uma Noite de Verão. Coestrelando: William Shakespeare.”
E antes de Fachada:
“O que você faria se fosse irmão da Morte? SANDMAN 20: Uma edição totalmente dedicada à irmã mais velha de Morpheus.”
Quanto as ilustrações extras entre as histórias, no final por exemplo tem uma página com o desenho do símbolo feito para aprisionar Morpheus no começo da série (não faça isso em casa, criançada!). Dentre os textos extras, dois são sobre gatos, sendo um sobre gatos famosos da cultura pop e outro intitulado O ronronar dos sonhos, de Leandro Luigi Del Manto, editor da edição da Globo, que ainda não li, e outro que talvez seja dele também que emula uma reportagem sobre a morte e traz referências a Nietzsche e informações, curiosidades e uma análise (eu só bati o olho, ainda não li também!, então é tudo especulação da minha parte) sobre a Morte em Sandman. E na sequência desse texto mencionado sobre a Morte tem ainda uma ficha da personagem, que promete maiores informações sobre ela mas, no entanto, não entrega nada além de um recado: “Um dia você a encontrará e descobrirá por si mesmo.” Enfim… É muita coisa e isso enriquece a leitura e eu acho insano que nos anos noventa havia um esforço para trazer esse tipo de coisa às revistas e hoje, que nem necessita mais de espaço na revista em si, com as editoras podendo se valer de um blog ou site ou página em alguma rede social, inexiste esse tipo de material no Brasil… Entristece.
Na sebo onde passei tinha outras duas edições da Globo, desse mesmo formato, mas estavam mais caras do que essa e eu só tinha dinheiro para uma, então fiquei me devendo e espero voltar lá e que ainda estejam lá quando, semana que vem, eu começar a receber (fim de mês é sempre um terror!)
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E você, lê Sandman?
Se lê, leu, ou pretende ler, recomendo DEMAIS que o faça acompanhado dos episódios do podcast Os Escapistas sobre a série, SANDMAN ANOTADO, que estão brilhantes e conseguem potencializar sua experiência de leitura ainda mais que tudo que eu destaquei de legal que tem nessa edição da Editora Globo que comentei aqui.