Tangências compila oito histórias em quadrinhos curtas do artista Miguelanxo Prado. O outro trabalho de Miguelanxo que eu conhecia antes dessa leitura era cômico e com muito de uma tradição do fantástico nas situações das também histórias curtas — Mundo Cão. Tangências é completamente diferente, ainda que se perceba o estilo do autor, tanto no texto como na arte, e também um mesmo olhar ácido sobre a sociedade humana; são histórias melancólicas sobre relacionamentos, reencontros e amor. Na edição da Conrad (2021) há ao final uma entrevista concedida à Sidney Gusman onde Miguelanxo diz que, se este fosse o primeiro de seus trabalhos que o leitor estivesse conhecendo, deveria adverti-lo que ele não é um autor de temas constantes.
Na leitura de Tangências muitos podem ter a impressão de que estão diante de um trabalho com abordagem focada no sexo, não no amor, como Gusman, que apontou isso na entrevista antes de perguntar sobre a origem das ideias para as histórias. Miguelanxo comenta que acredita ter usado a questão da última vez de um sexo entre um casal como ponto de ruptura. As histórias se encontram tematicamente justamente na ideia sugerida pelo título e evidenciada antes de iniciarmos a leitura dos quadrinhos:
Em todos os contos testemunhamos o fim de um casal. Mesmo quando no discurso há ainda espaço para algum tipo de retorno casual. Em todos, testemunhamos a contemplação do desencanto, da morte do desejo. Ainda que haja sexo ou ainda que uma das partes nutra alguma ilusão amorosa para o casal, não há mais o mesmo desejo que em determinado ponto de suas vidas os moviam, e ambas as partes percebem isso. Da mesma maneira, ainda que o leitor tente nutrir uma esperança romântica para alguma daquelas histórias, o livro está o tempo todo desiludindo, e reforçando: não há mais amor. Cada resquício de romance que ainda pareça se estender é logo apontando como mera ilusão que se desmonta frente ao pragmatismo com que cada um dos personagens vive sua vida.
E mesmo a pouca dor percebida é apenas pouca dor percebida; como se todos os personagens estivessem em um ponto da vida onde tudo é anestesiado, não somente o amor. Já não há lugar para o desejo. Nada mais além de uma praticidade mórbida os move. Ainda que possamos imaginar que em futuro algo diferente possa acontecer, o que presenciamos é um presente cinza e cadavérico, as histórias todas são melancólicas do início ao fim.
Personagens impassíveis que tentam por uma última vez entrar em contato com o que em outro momento de suas vidas os movia intensamente, os carregava de desejo. Na prática, parecem estar tentando se sentir vivos novamente. Em contrapartida, parecem também ter tudo o que já desejaram ter ou tudo o que precisam, e tirar alegria nenhuma disso. O que lhes falta, ou, parece faltar, não sabem bem, mas talvez seja o outro que deixaram passar em algum momento da vida, ou que não permitem entrar em suas vidas no momento presente, ainda que em algumas das histórias isso aconteça parcialmente. Praticamente todos os personagens percebem que já não sentem mais um intenso desejo pelo outro.
O texto aborda tudo isso com frieza e, novamente, praticidade, e tem momentos onde o tom de melancolia se eleva quando a narração vai mais à fundo nos sentimentos dos personagens.
No texto há também espaço para apontar para tudo que não cabe diretamente nas curtas histórias, mas que as envolve (e fica evidente nas escolhas para os cenários, por vezes até comentados pelos personagens). São possíveis razões disso tudo, tudo que há de mesquinho e frígido e parece conduzir a vida de todos para esse estado cinza. Seus empregos, encenações sociais…
O tom frio é também das cores, e o artista quebra isso por vezes para chamar a atenção para algum elemento, como na primeira história (Lampejos no cristal) usando o amarelo na camisa que o apático homem veste e no copo que chama a atenção ao final dela; ou nos carros que parecem dizer o tempo inteiro que os personagens estão prestes a partir.
[aliás, me doeu perceber que para além de perder pessoas que já consideraram ou ainda consideram de certa forma “um-amor-da-vida”, cada um dos personagens parece ter perdido a si mesmo]
Sexo é o único ponto real de encontro nos momentos que acompanhamos. Para além disso, os personagens parecem sentir nada (ou muito pouco) um pelo outro (mesmo os poucos que nutrem fracas ilusões). É uma fuga rápida da melancolia que retorna pós coito. O sabor ao final da leitura é amargo, como se nosso mundo somente comportasse ou proporcionasse possibilidade para a morte do desejo.
[feliz dia dos namorados]