Casa da Árvore dos Quadrinhos de Horror
Bem-vindo à minha Casa da Árvore dos Quadrinhos de Horror, onde eu me reúno com fantasmas e falo sobre quadrinhos para ler no Halloween
Meu quadrinho favorito do Neil Gaiman é A Comédia Trágica ou a Tragédia Cômica de Mr. Punch. Não que eu a considere a grande obra do autor ou coisa do tipo, é só que foi a que mais me marcou. Mas eu li há tanto tempo que não lembro da história em detalhes, tendo-a hoje quase como uma nebulosa memória de infância. A história é toda contada da perspectiva de um menino de oito anos mais ou menos e tem esse momento que ele conta sobre uma vez que o avô ameaçou jogá-lo no rio, brincando, é claro. “Devo jogá-lo na água?”, o avô perguntou ao menino que balançou a cabeça fazendo que não. Narrando a história, o menino diz, rememorando esse momento, que adultos são criaturas ameaçadoras, e então cita ameaças típicas que pais e outros adultos fazem às crianças, brincando ou intimidando. E então ele diz que mesmo que as crianças estejam convencidas de que os adultos estão mentindo quando fazem essas ameaças, há sempre a possibilidade de que eles estejam falando a verdade.
“Adultos mentem, mas não sempre. Quando eu tinha quatro anos eu acreditava em tudo, aceitava tudo, e tinha medo de nada. Agora eu tinha oito anos e acreditava no que eu pudesse ver e tinha medo de qualquer coisa que eu não pudesse. Tinha medo de coisas no escuro, de coisas invisíveis.”
Esse é o ponto do quadrinho de onde imediatamente parto quando lembro dele. E é algo que frequentemente uso para pensar o medo.
Quando criança eu tinha medo do escuro. Um dia eu me tranquei em um quarto, sozinho, e apaguei a luz. Eu fiquei ali por um longo tempo. A minha ideia era: se eu ficasse ali tempo o suficiente e sobrevivesse, não teria mais medo do escuro. Nada aconteceria, eu pensava, e nada aconteceu.
O quadrinho mais assustador que eu já li
O quadrinho mais assustador que eu já li foi Outcast, de Robert Kirkman. O criador de The Walking Dead pensou Outcast já como uma série de televisão, e o quadrinho seria uma maneira de introduzir a história ao público e tentar criar uma base de fãs no momento anterior à produção da série que já tinha sinal verde para acontecer devido ao sucesso de sua série de zumbis. E Outcast, a série de televisão, é aparentemente um horror, no sentido negativo da coisa [eu na verdade não sei, não cheguei a assistir, mas pelo trailer (e outras cenas aleatórias que vi) eu já me apressei nessa conclusão (assista o trailer e entenda)]. Acho que nem teve uma segunda temporada. E o quadrinho rumou um final apressado (devido ao fracasso da produção para TV) que fechou a história sem no entanto fazer jus ao seu começo promissor. Eu nem acho que a história seja boa (diria que é funcional), ou que os personagens sejam cativantes (costumo medir a força do personagem por saudade, e não tenho saudade de ninguém de Outcast, ainda que Kirkman faça um bom trabalho, em especial em como aprofunda a dramaticidade de cada um deles sem cair no pieguismo ou pesar a mão), mas Outcast é um gibi magnífico. E a razão da magnificência de Outcast está principalmente no trabalho brilhante de Paul Azaceta.
O terror que Kirkman concebeu para a série é calcado na paranoia, e Azaceta entendeu isso muito bem. Sua arte alimenta essa paranoia presente na história, e a sensação foi me invadindo; conforme eu lia, o escuro parecia mais opressivo. Há momentos de maior horror violento quando as possessões demoníacas se mostram mais intensas, mas o que mais assusta é o momento que precede a violência e, em especial, o que assusta e perturba constantemente são os momentos onde aparentemente nada de ameaçador está acontecendo, e de repente você repara em algum detalhe (na imagem anterior, a figura que espreita os personagens em primeiro plano, mas às vezes é qualquer detalhe que nem sempre indica coisa alguma), e o que antes era visto como um espaço inofensivo passa a ser percebido como espaço de opressão; e mais frestas se apresentam por onde um mal pode invadir um mundo aparentemente normal; e de repente toda e qualquer pessoa pode estar prestes a te atacar.
Eu viveria em um quadrinho de Thomas Ott
Thomas Ott é um artista impressionante. Conheci o autor com Cinema Panopticum, e desde então esse é um dos meus quadrinhos favoritos. Em tempos recentes li A Floresta e O Número 73304-23-4153-6-96-8 (sim, é o título do quadrinho). Todos os três citados são ótimas pedidas para quem, como eu, busca perturbação. A Floresta é uma história de sensibilidade ímpar. O Número 73304-23-4153-6-96-8 te conduz vertiginosamente até o fim da linha.
Em Cinema Panopticum uma menina está num desses parques de diversão [ou chame de qualquer outra coisa parecida] e tem apenas cinco moedas, mas a maioria das atrações exige mais do que isso. Até que ela encontra uma cabine onde no topo se lê CINEMA PANOPTICUM logo abaixo de um desenho de um olho [desde então eu sonho em viver a mesma experiência dessa menina]. Dentro da cabine há cinco máquinas, cada uma tem uma tela que lhe mostrará um filme pelo preço de uma moeda. E então acompanharemos com ela esses cinco contos.
A arte de Thomas Ott é muito expressiva e parece nascer a partir da sombra, como se ele jogasse luz num quarto escuro e revelasse monstros escondidos. Como a própria interação com Cinema Panopticum, você abre os livros de Ott inclinado a ser entretido, mas pode terminar horrorizado e sair da leitura perturbado por um bom tempo, rememorando e pensando sobre o que viu acontecer. São leituras curtas, mas que deixam marcas.
Aquela menina com uma Tomie tatuada no braço
Eu demorei bastante tempo para ler Junji Ito (com exceção da primeira história de Tomie e momentos aleatórios também envolvendo sua personagem mais icônica vistos no Tumblr). Hoje em dia eu amo o trabalho do autor, ainda que eu não seja um leitor tão voraz assim de sua obra. Gosto de ler de pouco em pouco, quando me dá vontade do que ele justamente entrega: invariavelmente um horror que entretém. Além de também entregar por vezes grandes histórias. Acho que é muito pessoal, o que vai te assustar mais, mexer mais com seus anseios. Então o que pode ser uma grande história para alguém pode ser só um horror que entretém para outra pessoa.
Um dia eu estava no bar com um amigo e tinha uma menina olhando para mim. Constantemente. Eu não olhava de volta. Eu não sei o que em mim chamava a atenção dela, mas nela uma coisa me chamou a atenção quando cheguei ao bar: ela tinha a Tomie tatuada no braço. Meu amigo percebeu que ela não parava de olhar para mim e depois de um tempo me perguntou, “Você reparou que…”, e eu disse que sim, mas que eu não estava interessado. Ela era linda. Uns dez caras tentaram puxar assunto com ela, flertaram, demonstraram interesse, tentaram, tentaram, tentaram… Mas ela só tinha olhos para mim. Eu até pensei em falar “Legal sua tatuagem” quando ela ficou do meu lado na fila para o banheiro. Mas no fundo eu sabia que não estava interessado. Não que eu não estivesse interessado nela. Eu só não estava interessado em interagir com estranhos naquela noite. Tem noites e noites. Às vezes eu só quero ficar à mesa falando sobre quadrinhos e outras coisas com esse meu amigo; era o caso. Na manhã seguinte eu pensei que eu talvez tivesse escapado de me tornar um personagem em uma das histórias da Tomie. Eu ficaria fixado naquela menina e isso arruinaria a minha vida. Ou talvez naquela mesma noite eu teria estado ao seu lado, ela dormindo se viraria e eu veria que a tatuagem não estava mais no seu braço, e quando eu me virasse para o outro lado, Tomie estaria com a gente, não mais encarcerada em um braço, mas em carne, osso e nanquim, prestes a trazer um final violento à minha história.
Quando leio Junji Ito com frequência, coisas estranhas acontecem ou, melhor dizendo, vou percebendo e imaginando coisas estranhas. Será que imaginei que a menina tinha aquela tatuagem [e você diria, “Você provavelmente imaginou que ela estava realmente te dando tanta moral assim, Henrique”]? Em Tomie (há dois volumes no Brasil que compilam todas as histórias da personagem) se percebe a evolução no trabalho do mangaká. Outras obras talvez fisguem um novo leitor mais de imediato. Meu filho é fascinado pelo autor, então tudo que já comprei de Junji Ito foi para dar para ele de presente. Ela me empresta depois que termina de ler, sempre apontando qual foi sua história favorita para que eu leia com mais atenção.
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Como eu disse no começo do texto, quando criança eu tentei superar o meu medo do escuro me trancando em um quarto, sozinho, de luz apagada. Eu ficaria ali até que eu não tivesse mais medo do escuro. Nada aconteceria, eu pensava, e nada aconteceu. E então eu saí do quarto. Decepcionado. Eu entendo isso hoje. Eu não entendi isso no dia. Meu objetivo era não sentir mais medo. Ou ao menos eu achei que fosse. Mas bem no fundo, eu queria sentir o máximo de medo possível. Eu queria que acontecesse algo que me assombrasse pelo resto da vida. E nada aconteceu. Por isso eu gosto tanto de histórias de terror. Quando eu começo um quadrinho de terror eu sinto como se tivesse entrando no quarto escuro novamente. Mas dessa vez vai ser como se dentro dele houvesse uma das máquinas do Cinema Panopticum, ou como se eu fosse perceber que não estava sozinho ali, ou que uma força demoníaca pudesse me possuir. É como uma ameaça que sabemos ser da boca pra fora. Até o dia que não é.
[o fim]
Quadrinhos mencionados:
A Comédia Trágica ou a Tragédia Cômica de Mr. Punch
Outcast
A Floresta
O Número 73304-23-4153-6-96-8
Cinema Panopticum
Tomie
Como capa da postagem escolhi essa maravilhosa capa de Bart Simpson’s Treehouse of Horror #2, que ilustra bem a ideia do texto todo.