A inescrita autoria de Jack Kirby
Se você olhar bem para a foto da masmorra ao final do texto verá os famosos Kirby Dots
O Inescrito, de Mike Carey e Peter Gross, conta a história de Tom Taylor, personagem fictício / indivíduo do “mundo real” (da história) que trava uma guerra contra misteriosos inimigos, membros de uma sociedade secreta chamada Cabala que controla o mundo em benefício próprio através da ficção. Tom Taylor é filho de Wilson Taylor, autor de uma série de livros cujo personagem central se baseia em seu próprio filho e cuja trama se assemelha com as de séries de fantasia como Harry Potter.
No volume cinco de O Inescrito, intitulado Ontogênese, descobriremos que Wilson Taylor, até então principal figura combatente à Cabala, já trabalhou para o grupo, e acompanharemos um capítulo de sua história que se relaciona com a história das histórias em quadrinhos norte-americanas em sua origem, ou seja, também relacionado com literatura pulp; os quadrinhos eram vistos como um entretenimento barato para as massas com potencial disruptivo que a Cabala precisava cortar pela raiz antes que algum herói pulp se tornasse um problema tão grande quanto fora (eles citam, em paralelo a um vindouro Superman) Jesus Cristo em outro momento da história da civilização humana. Um dos objetivos da Cabala é dar fim à material transgressor e Wilson Taylor tem de lidar com esse problema, mas acaba se apaixonando pela autora de The Tinker, uma popular série de quadrinhos do começo dos anos 30.
A solução que Wilson Taylor encontra é a de mostrar para a Cabala que eles não precisam dar fim aos gibis, e sim tomar controle das criações que nascessem nesse formato e tirar os autores da equação. Sem os autores, o potencial dos personagens podia ser explorado por figuras que estivessem alinhadas aos interesses da Cabala.
Wilson Taylor deu a ideia na trama fictícia de O Inescrito para o que veio a acontecer na nossa realidade: os direitos dos personagens serem das empresas que os publicam e não dos trabalhadores que produzem as histórias. Os super-heróis e toda a sua potência no imaginário popular (Grant Morrison em Super Deuses os aponta como nossos novos deuses) seriam utilizados para mover os interesses de poderosas figuras obscuras em O Inescrito, e para mover os interesses de empresas como DC Comics, Marvel Comics, Disney, Warner, etc., no nosso mundinho real.
A autora de The Tinker em O Inescrito tem um final melancólico que rima com o final melancólico de tantos criadores cujo nome pode ser familiar aos leitores mais assíduos desse tipo de ficção, mas não ao grande público. Jerry Siegel, Joe Shuster, Bill Finger, Joe Simon, Jack Kirby, Steve Ditko e tantos outros tiveram usurpadas as suas criações e o reconhecimento que mereciam por elas por décadas, ainda o têm, e se faz oportuno pensar e falar sobre isso ainda mais em momentos como o do lançamento do documentário Stan Lee no Disney+. Muito serve à Marvel, à Disney, ter no imaginário popular um personagem como Stan Lee como o autor do conjunto de obras do Universo Marvel, cujos direitos são destas empresas. Afinal de contas, enquanto um personagem tão carismático como Stan Lee inspira multidões com suas mentiras, as pessoas não pensam nem falam sobre o que essas empresas fizeram com os reais criadores desses personagens.
Correndo o risco de ser injusto com Stan, o homem, Lee, pouco ou nada atribuo a ele autoria quando penso e falo sobre o Homem-Aranha, o Doutor Estranho, o Quarteto Fantástico, os X-Men, (a lista é enorme)... Sendo justo com Stan, o personagem, Lee, Stanley Lieber, a empresa Marvel Comics e nos anos mais recentes a Disney conseguiram vendê-lo de maneira muito bem sucedida como criador do Universo Marvel. Compre essa história o quanto quiser e prove seu amor pela empresa Marvel, muitos o fazem sem qualquer vergonha. Aos que amam o universo Marvel (e serve de reflexão para o universo DC, seus personagens e seus criadores da mesma forma), vale a pena repensar o quão pouco se combate a figura de Stan Lee como criador maior, ou melhor dizendo, convenhamos, único, que é a ideia que a empresa vende por exemplo, com suas participações em todos os filmes que adaptam os quadrinhos Marvel. E um convite a esse combate foi a carta escrita por Neal Kirby, filho de Jack Kirby, divulgada no twitter pela neta do autor, Jillian Kirby, em resposta ao documentário.
A autora de final melancólico em O Inescrito se chamava Miriam Walzer, mas assinava como Milton Jardine para poder vender suas histórias pois não comprariam material pulp de uma mulher à época. Em determinado ponto da história ela diz que o que almejava com seu trabalho era pintar sonhos nas mentes das pessoas. Stanley Lieber foi o criador de Stan Lee e da história de que ele criou o Universo Marvel, mas de fato Jack Kirby foi o autor mais proeminente entre tantos outros que trabalharam na criação deste universo. A ontogênese da Marvel se deu em cenários como a Masmorra, o porão onde Jack Kirby trabalhava, e onde nossos sonhos foram ilustrados.